Especialista alerta para doenças causadas pelo contato com objetos contaminados.
Uma trilha colorida se estende por metros de asfalto enlameado. São bonecas de pano, peças de quebra-cabeças, bonecos de super-heróis, carrinhos de plástico e bichos de pelúcia cobertos de barro. Inevitável pensar que antes da cheia histórica de maio, tais brinquedos tenham sido os preferidos de algumas das crianças que vivem na Vila da Paz, comunidade periférica de Eldorado do Sul. Talvez, ainda, os únicos que já possuíram.
Dois meses e meio após o rio Jacuí ter inundado cerca de 90% da cidade localizada na região Metropolitana de Porto Alegre, esses objetos que remetem à infância dividem espaço com casas literalmente arrastadas para o meio da rua. Muitos estão no topo das pilhas formadas por diversos objetos descartados das moradias; entre madeiras com pregos enferrujados, roupas, ferros, telhas, caliça, móveis e outros objetos domésticos abandonados sobre as vias, tornam-se perigosos alvos da curiosidade infantil.
Ao entardecer, um grupo de crianças – duas meninas e três meninos – explorava os descartes na frente das moradias na avenida Getúlio Vargas, área central do município. Alguns dos brinquedos encontrados eram separados e deixados ao lado de um colchão, também jogado fora após ter contato com a água e o barro da enchente.
Perto dali, um monte de madeira serviu de trampolim para as crianças. A imaginação infantil transformou os destroços de uma casa em navio pirata e o asfalto molhado virou mar no qual eram jogados os membros da tripulação presos após uma rebelião fracassada. Um dos meninos empunhava um estilingue, arma usada para frustrar as aspirações dos amotinados.
Parte dos brinquedos recolhidos pelos pequenos desbravadores do alto-mar pertenceram aos irmãos, Arthur, 5 anos, e Miguel, 10 meses. Blocos de montar, dinossauros e personagens de histórias em quadrinhos e do cinema estavam entre outros jogados fora pelo pai dos meninos, o padeiro Bruno Salvato, 26.
“São brinquedos novos, mas não dava para lavar e dar de novo para eles. Não tinha como fazer isto e ficar tranquilo”, justificou Salvato, que ainda demonstrou preocupação com as crianças do bairro reaproveitando o que foi jogado fora.
“As crianças estão caminhando no barro e subindo no lixo, algumas de chinelo, na chuva, neste frio todo. Não tem como pedir que elas não brinquem, queremos que tirem essa sujeira toda daqui”, afirmou o morador.
“Estamos esquecidos, no meio da sujeira. Não tem luz em muitas casas, o cheiro de podre é insuportável”, protesta a dona de casa Eliziane Padilha.
Além da demora na limpeza, a moradora teme pela saúde dos três filhos pequenos. “Não tenho nem como deixar o bebê no chão, fica o tempo todo no colo”, relata.
A atração dos pequenos por objetos do pós-enchente também foi vista em Porto Alegre. Na Ilha dos Marinheiros, bairro Arquipélago, o “tesouro” encontrado foi um monte de pneus. No depósito temporário do Porto Seco, na zona Norte, perucas coloridas. Na Vila Farrapos, a insegurança vinha da brincadeira em gangorras de um playground coberto de lama poucos dias após a água baixar.
O perigo dos resíduos da enchente
Manipular materiais que tiveram contato com a água das inundações oferece riscos como doenças diarreicas e de pele, lesões perfuro cortantes e doenças infeciosas. “Muitos são os perigos de infeções pós-enchentes. Saliento o potencial de contaminação da leptospirose (doença transmitida a partir da exposição direta ou indireta à urina de animais, principalmente ratos); adultos e crianças devem ficar atentos ainda às dermatites de contato e lesões cortantes que podem infectar e transmitir tétano”, enumera a professora do curso de Medicina da Universidade Feevale, médica infectologista Adriana Neis Stamm.
Assim, a especialista alerta sobre o perigo no reaproveitamento de roupas, pertences e utensílios domésticos. “A limpeza e desinfecção dos ambientes, utensílios, móveis e outros objetos são imprescindíveis. Materiais como inox e vidro podem ser limpos com água sanitária, para os demais, a recomendação é o descarte; usando luvas, botas de borrachas ou outro tipo de proteção para as pernas e braços (como sacos plásticos duplos), descarte tudo para a coleta pública.
Somado a isso, as residências e objetos que ficaram por extenso período embaixo d’água estão sujeitos à propagação de mofos ou bolores (causados por fungos), que ocasionam outros danos à saúde como reações alérgicas e até mesmo doenças crônicas do trato respiratório, entre as mais graves, asma e pneumonia. “Para evitar, reforço o cuidado no manuseio de todos os descartes, além de manter em dia a vacinação de crianças e adultos”, finaliza a médica infectologista.
Ações para recolher os resíduos das ruas
De acordo com a prefeitura de Eldorado do Sul, cerca de três mil famílias ainda não conseguiram voltar para casa, sendo o maior número nos bairros Itaí, Cidade Verde, Picada, Sans Souci e Vila da Paz.
A limpeza das ruas ocorre diariamente, contudo, mais de 90% do município foi afetado, o que proporciona uma demanda extraordinária de trabalho às equipes. As equipes de saúde efetuam ações nas áreas afetadas, com o objetivo de reduzir impactos à população.
Já a prefeitura de Porto Alegre mantém um posto avançado com serviços de saúde, assistência social e habitação em regiões afetadas pela inundação, como o bairro Arquipélago. Equipes da Secretaria de Serviços Urbanos (SMSUrb) se uniram a representantes da Marinha do Brasil para intensificar a retirada de entulhos e a limpeza das ruas. Uma força-tarefa, com 15 garis, trabalha na região das ilhas com sete caminhões e duas retroescavadeiras para o recolhimento dos resíduos.
O Departamento Municipal de Limpeza Urbana efetua, segundo a SMSUrb, a lavagem e varrição de ruas e espaços públicos, e a segurança foi reforçada no depósito de resíduos temporário do Porto Seco, para evitar a circulação de pessoas no local.
Correio do Povo