Estamos em guerra com a nossa bacia hidrográfica, que não mais rasteja, sequer marcha. Já corre, já atropela os obstáculos e barreiras pela frente com violência e angústia.
É como uma guerra.
O exército adversário toma o interior, para ir se aproximando da capital e da sede do poder.
Vai nos encurralando pelas margens, até não termos mais como fugir.
O perigo não vem do alto, de bombardeios por ataque massivo de caças. Vem do rés do chão.
Nossa briga é com a nossa bacia hidrográfica, que não mais rasteja, sequer marcha. Já corre, já atropela os obstáculos e barreiras pela frente com violência e angústia.
Nossos inimigos são nossos rios e lagos, que rodeiam a rodoviária e se aproximam do Palácio Piratini e da Assembleia Legislativa, na Praça da Matriz.
Vivemos um suspense de aproximação, um terror da iminente invasão. A cada 24h, ficamos mais próximos do maior desastre natural da história gaúcha.
Não dá para culpar o governo estadual. Agiu com rapidez, prontidão e rigor na defesa e socorro aos flagelados.
Pensávamos que jamais repetiríamos a subida do rio Guaíba a 4m76cm, marco da histórica enchente de 1941. Superamos o recorde negativo, agora nem sabemos onde o índice é capaz de parar.
A prefeitura de Porto Alegre está às cegas sobre nível do Guaíba, sem medição exata. Não se confia mais nem na régua.
Os dados da cheia se mostram desatualizados, bem como os números de mortos e desaparecidos.
O tempo no Rio Grande do Sul vem sendo medido por perdas, é um fuso diferente do país. Não é areia que escorre na ampulheta, é água, é a veloz e vertiginosa água.
Existe, ainda, a pior estimativa de que a cheia vá muito além de cinco metros, com a ajuda do vento Sul, que arremessa as águas em direção à cidade. Não contamos sequer com a sorte do vento Norte, que ajudaria a empurrar as águas para longe de Porto Alegre, para dentro da Lagoa dos Patos.
A chuva e a ventania viraram aliadas da destruição.
O cenário deve superar em muito os danos causados em novembro, na enchente que atingiu a cota de inundação de 3m46cm.
O Muro da Mauá tem seis metros, protegendo a região mais central, mas a Região Sul, as Ilhas e o outro lado do Guaíba podem ser seriamente afetados. O Quarto Distrito pode ficar debaixo das águas, havendo inclusive alagamentos nas imediações do aeroporto.
Na verdade, nunca testemunhamos e sequer imaginamos os efeitos da enchente transpondo as nossas muralhas de Jericó. Ninguém, então, escapará de ouvir as trombetas do nosso particular e solitário Apocalipse.
Nosso interior já se vê destruído, com evacuação de grande parte das cidades. Os telhados restaram como únicos pontos visíveis das casas.
O rio das Antas já se apresenta com absurdos seis metros.
Tudo o que foi levantado em séculos de civilização e trabalho acabou sendo coberto em horas.
É uma baldeação implacável da correnteza, da lama. Em uma hora, as cidades de São Valentim do Sul, Santa Tereza e Muçum se encontravam submersas. Na hora seguinte, Encantado e Roca Sales. Duas horas depois, Arroio do Meio e Lajeado.
A ameaça de falta de luz e de racionamento lota supermercados e postos de gasolina.
É uma guerra. Uma assustadora e imprevisível guerra. A floresta caminha como em Macbeth de Shakespeare. Os morros caminham. As tropas fluviais vêm de todos os lados. Estamos cercados de medo do imponderável.
O tempo no Rio Grande do Sul vem sendo medido por perdas, é um fuso diferente do país.
Fabrício Carpinejar
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